segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Dia 14


Os cavalos continuam a ter na Roménia a mesma importância que sempre tiveram noutros tempos. São tracção na agricultura e meio de transporte nos meios rurais e também nos menos rurais. Sai-se de Bucareste e aparecem como cogumelos as carroças puxadas por um ou dois cavalos, menos os encorpados, mais os escanzelados - a linhagem alimentar mais comum, aquela que mostra que o seu dono já pensou: se ele anda na mesma e eu ponho-lhe cada vez menos comida, é porque pode! Mas um dia deixa de poder...
Mas nem tudo é retrocesso, nem tudo é estagnação. As carroças já seguiram o sem-fim tecnológico do mundo que as rodeia. Das rodas de madeira, com piso de metal e chiadeira a acompanhar o trepidar na estrada esburacada passou-se para a adopção, unânime diria, de  pneus de borracha, recauchutados ou nem por isso, com jantes recuperadas dos velhinhos Dacias e tudo.
E assim se reinventa um novo meio de transporte, cheio de retro-power, ele é para o trabalho, ele é para levar as crianças à escola, ele é para ir fazer compras, ele é para trazer sacas de cimento para remodelar o anexo lá de casa, ele é para trazer milho até transbordar, nem sempre colhido de campos que lhes pertencem...
Ao fim de 3 dias habituamo-nos à ideia e já não temos pena dos cavalos. Ao fim de 5, temos vontade de experimentar uma carroça daquelas. Ao fim de 10, trocamos o nosso carro por uma carroça e queremos percorrer a Roménia assim.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Dia 13


Para mim, não há nada mais fantástico, mais incrível, mais desafiador, mais estranho, mais intrigante do que ouvir uma língua estrangeira. 
Sempre pensei ter mais facilidade para aprender uma língua do que aquela que eu tenho revelado. Às vezes, ponho-me a ouvir as outras pessoas a conversar, sobretudo no autocarro, no 136 e no 133 que me levam invariavelmente de forma gratuita para o complexo Baneasa. No metro as pessoas não falam, vão em silêncio. Se calhar é porque vão no escuro, não dá tanta vontade de falar no escuro. As pessoas vão-se avaliando mutuamente. Ou então vão distraídas. Ou não gostam de falar num metro que se chama "metrorex". Têm vergonha.
No autocarro, o que eu mais gosto é de ir a ouvir as conversas. Quem conversa nem imagina como o meu ouvir é tão ingénuo, tão duro, não rouba nada, só ouço sons, mas ninguém sabe e isso é bom. Fico a imaginar sobre o que conversam de outra maneira, pelas caras, pelos risos, pelo tom. Percebo 5 ou 6 palavras num discurso e fico a pensar como a língua nos envolve, nos protege, nos separa.
As minhas tentativas de aprender romeno estão votadas ao insucesso. Não falo romeno com ninguém (assim que tento, faço uma misturada pegada que acaba invariavelmente em Inglês, que os romenos arranham muito mal). Acho que aprender uma língua é ensinar também a sua língua. Devia ser uma troca. Tu ensinas-me esta palavra e eu digo-te como se diz em português. Devia ser assim. Quando aprendi a dizer alguns legumes tive vontade de dizer como era em português. Morcov se spune "cenoura" , rosi se spune "tomate". E é tão engraçado, é mesmo dar alguma coisa que não estão à espera.
Uma vez vi um professor português que ensinava alunos de diversos países (Bangladesh, Nepal, Índia) fazendo trocas com eles: os alunos iam ao quadro escrever os nºs na sua língua de origem e o professor tinha de adivinhar.
E, de repente, olho para os fios do telefone diabolicamente enrolados, olho para aquele emaranhado e é assim que me sinto, num meio confuso de outras linhas, que se tocam, mas só por fora. É a metáfora perfeita para as minhas escutas no 136, que quase me embalavam e adormeciam. A confusão é a língua romena e eu sou o emaranhado todo. E depois olho novamente e o resultado é esta imagem. ce tară!  

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Dia 12

Se queremos ter um olhar verdadeiro sobre a sociedade romena, os filmes que vão aparecendo mais ou menos esporadicamente nas nossas paragens são um belíssimo par de óculos (para salvar a metáfora inicial). Aliás, quase todos os filmes que vou postar consegui ver em Portugal.


O 1º de que vos quero falar é o "4 luni, 3 săptămâni şi 2 zile" (4 meses, 3 semanas e 2 dias) um filme que retrata magistralmente a Bucareste de final dos anos 80. Este filme foi vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 2007.


Este, julgo, não passou em Portugal, mas todos os outros de que vos falarei a seguir passaram (ou no cinema, ou na televisão, regra geral no canal 2).


Deixo aqui o trailler para aguçar a curiosidade...
http://www.youtube.com/watch?v=xzitmvuOLKE 


O realizador, Cristian Mungiu realizou também o Amintiri din epoca de aur(Tales from the Golden Age)que passou há mais ou menos 2 meses em Portugal, embora restringido às salas do Corte Ingles, de que falarei noutro post.


Mas hoje os louros são para outro filme. E como os merece...

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Dia 11

Como prometido conto agora a história da mulher daquele senhor que já foi um menino. Mas com ela vou começar ao contrário, vou começar do fim e chegar ao início. A ver se consigo.
Esta senhora que morreu no Inverno, no dia de Natal, quase a fazer 74 anos, não estava bem. Estava assustada com o tudo o que se passava à sua volta, mas nunca quis dar parte fraca. Como um gato com medo que se assanha para não fugir, ela gritava para não chorar. Nos gritos que dava dizia que não podiam estar a sujeitá-la aquilo porque ela era a mãe de todas as pessoas daquele país. E eu acho que ela morreu a pensar que era de facto assim.
Esta senhora era muito importante no seu país, tão importante que as pessoas de um modo geral faziam canções e hinos em sua honra e na do seu marido. Ela ensinou como se devia fazer e pouco depois esta era a principal distracção das pessoas: treinar cânticos e coreografias que os enalteciam por serem tão bons.
Neste tempo, as pessoas não podiam ver muita televisão para não gastarem electricidade, mas no tempo que lhes era permitido, transmitiam-se essas coreografias para as pessoas ficarem com uma outra perspectiva daquilo que faziam.
As pessoas também não podiam comer muita carne nem outros alimentos nem sequer gastar electricidade pois tudo estava muito caro e custava muito dinheiro ao país.  
Esta senhora teve também a ideia de que não podiam existir divórcios, para todos se darem sempre bem e para existirem cada vez mais crianças.
Esta senhora era doutorada em ciências farmacêuticas e tinha vários artigos científicos em seu nome. Mas era tão inteligente que nunca precisou de frequentar a faculdade tal era a sua clarividência para os fenómenos químicos e as idiossincrasias da vida de um modo geral.
Em sessões públicas, ela levava uma "tradutora" que respondia em inglês a todas as perguntas que eram feitas à senhora. Mas isto era só porque ela não sabia falar muito bem outras línguas, não era por mais nada. Não era por não saber, nada disso!
Esta senhora que nasceu e morreu no Inverno foi uma menina muito antes disso. As pessoas que nascem no Inverno dos países onde o Inverno não brinca no seu serviço devem ser pessoas muito fortes, muito rijas, para conseguirem aguentar tamanho embate desde tão cedo, desde que existem.
Esta menina era filha de um lavrador e saiu da escola com o 1º ciclo do ensino básico por concluir, apenas com aproveitamento em trabalhos manuais de costura. Mas isso era porque a escola dela não percebeu logo como ela era inteligente.
Também foi para Bucareste pela mão do irmão mais velho para trabalhar numa farmácia como ajudante. Pouco tempo depois deixou este trabalho e tornou-se operária fabril têxtil mas o bichinho da farmácia tinha lá ficado.
Entretanto conheceu o rapaz de que falei, namoraram muitos anos e casaram, também no Inverno, era mesmo para o que estavam toldados, para o frio gelado destas paragens. 
Era uma vez uma menina que saiu da escola com nota positiva a lavores e trabalhos manuais e tornou-se uma das mulheres mais importantes da história do seu país.
Esta história não termina aqui, mas tenho a impressão de que não consigo falar sobre estes dois senhores, sem ser assim, como se de um conto se tratasse. 

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Dia 10

Era uma vez um senhor que nasceu e morreu no Inverno, num país onde o Inverno é sempre muito rigoroso. Tinha 69 anos e vivia na 2ª maior casa do mundo que construiu com a ajuda de muitas, muitas pessoas. Morreu acompanhado pela mulher que partilhou consigo os últimos 50 anos da sua vida. Morreram de uma forma muito rápida no dia de Natal, que não é um dia para se morrer.
Este senhor foi um menino que nasceu no seio de uma família muito pobre. O pai era pastor mas também conhecido por roubar e por estar quase sempre bêbado. No dia em que foi registar este filho, o 3º, que acabou por ter mais 10 irmãos depois de si, estava tão embriagado que lhe deu o mesmo nome de um dos outros filhos. 
A mãe estava durante o dia a trabalhar e era vítima de um marido irado, violento e pouco honesto.
Este menino tinha cada vez mais vontade de sair da vila onde até aí vivia.
Um dos seus irmãos era sapateiro na capital, e esta foi a forma que o menino arranjou para deixar a escola e juntar-se ao irmão numa das cidades mais cosmopolitas da Europa. Só que este menino não tinha nem a educação nem o dinheiro para usufruir destes luxos e isso criou nele uma dor estranha, a que muitos chamam raiva e ressentimento. Nunca aprendeu a fazer sapatos porque era um bocadinho preguiçoso e houve uma vez que brigou com outro menino até ser detido pela polícia, que na altura não gostava mesmo nada de lutas entre rapazes. 
Este menino não estudou mais do que o 1º ciclo do ensino básico, falava a carregar muito nos rr's e não era nada bonito. Era muito baixinho também.
Acho que começou a aperceber-se de que, se andasse com os mais velhos talvez tivesse mais hipóteses de se tornar como eles. E assim foi. Fazia todos os favores que os mais velhos lhe pedissem. Até distribuir propaganda sobre as suas ideias e foi preso por causa disso. Mas não desistiu. 
Na prisão havia tantos livros daqueles que os mais velhos estavam sempre a falar, que ele achou uma boa ideia lê-los todos e decorá-los para os mais velhos verem que ele gostava muito deles e queria ser como eles. Às vezes não percebia muito bem aquilo que lia e por isso memorizava ainda mais. Alguns colegas na prisão diziam que ele era muito inteligente por decorar tanta coisa. Mas, ao mesmo tempo, não podiam contrariá-lo, porque aquela fúria interior explodia e ele começava a tremer e a gritar. Aos poucos, este rapaz foi-se tornando adulto e foi conseguindo fazer quase tudo aquilo que queria. Conheceu a mulher da sua vida, teve profissões com que os adultos sonham como ser presidente, primeiro de uma secção, depois de um partido, depois de um país. Não precisou de eleições, pois ele sabia que seria um bom presidente para todas as pessoas. Começou a querer ser conhecido nos outros países e conseguiu. E gostavam dele e vinham visitá-lo também. Quando era ele que ia visitar os outros países queria tanto ser como eles que trazia recordações dos sítios onde ficava. Sem ninguém saber. A certa altura, começou a desconfiar  que podia haver pessoas invejosas, que queriam ser como ele e que por isso o queriam envenenar. E assim passou a analisar toda a comida que era consumida por si e pela sua mulher. 
Mas esta história é tão comprida e tão triste também que vou deixar o resto para um outro dia.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Dia 9


Gosto de imaginar a geografia da Roménia como a jibóia que engoliu um elefante do Saint-Exupéry e ficou com uma grave escoliose nas costas por causa disso. A escoliose é fácil perceber o que é, são as montanhas (os Cárpados). Depois, a cabeça da jibóia é o delta do Danúbio a fugir para o mar negro e pronto, depois é só imaginar um elefante lá dentro porque cabe mesmo bem.


Mas devo dizer que esta não é a figura de estilo mais adequada para o país. É que a Roménia é tudo menos um elefante branco. É antes um animal que ainda não foi descoberto. E em certa medida até é intrigante como ainda se mantém assim. Para lá das montanhas, a zona da Transilvânia que só no início do século foi assumida efectivamente como parte do país (não me canso de dizer isto) é uma zona quase virgem que alberga ursos, lobos e linces, animais em vias de extinção no nosso país. Na zona do delta do Danúbio a comunidade de aves é enorme. A floresta densa que aqui se mantém é muito o resultado do abandono a que o país esteve votado na longa época do comunismo. Nessa altura, as prioridades do país eram outras: fomentar uma industrialização que já na altura era obsoleta nos restantes países europeus, reduzir a dívida pública, conseguida a custos incríveis a sacrifício de quase toda a população, ter cada vez mais mão-de-obra ao serviço do Estado e adorar um líder esquizofrenicamente obcecado com a sua própria imagem e culto.

E o resultado é este: um país com uma biodiversidade e um potencial turístico quase intocável está à deriva na União Europeia.

E é por isso que gosto de imaginar que este país é um desenho saído de um livro muito sério sobre as coisas mais importantes da vida: o livro de como se aprende a cativar. E acho que este país me vai cativando aos poucos.

domingo, 5 de setembro de 2010

Dia 8



Nunca percebi muito bem porque é que os romenos tiveram tanta necessidade de encontrar as suas raízes na latinidade dos romanos, que não se demoraram por cá mais do que 100 anos. Aliás, depois percebe-se que salvo esse oásis que é a língua romena no meio do leste, pouco mais há que os ligue verdadeiramente à cultura romana antiga. Depois são ortodoxozíssimos (embora celebrem o Natal no mesmo dia dos católicos, lá está outro oásis), a alimentação é toda ela mais (pobremente) influenciada pelos países vizinhos, foram comunistas mas, outra vez, os únicos comunistas que se abriram a ocidente...enfim, quanto mais escavo, mais contradições encontro.
Mas se calhar é isso que me deixa curiosa aqui. Intriga-me esta miscelânea de tonalidades que são os romenos (com origens dácias - ou lá o que isso é - russas, turcas, húngaras, autríacas, eslavas, ciganas); as diferenças abissais de um país que tem 4 ou 5 dentro dele (se pensarmos nas diferentes regiões, acho que cada uma faria muito bem um país diferente (a enorme Transilvânia, a Moldávia, Crișana e Banat, Maramureș, Dobrogea).
Depois há outra coisa mais ou menos difícil de descrever que é a confusão. Sim, acho que é isso, a confusão. Esta confusão encontra-se menos quanto mais para norte se caminha. Aliás a zona da Transilvânia só na 1ªGM foi considerada romena. Portanto, penso que a confusão que sinto é muito a falta de identidade que se encontra em Bucareste.
Digo confusão porque há mesmo uma confusão de influências, ora francesas, ora romanas, ora simplesmente bacocas que o Sr. Ceaușescu fez o favor de imprimir à cidade e aos seus arredores. Uma confusão de carros a cair de podres e carros topo de gama, um trânsito quase tailandês, ruas tão sujas como as chinesas, mulheres com cortes de cabelo típicos do leste e outras com roupas que eu não vejo em Nova Iorque...

Num dos livros que li os romenos queriam por força esbater as influências eslavas que tinham (porventura mais presentes no norte este do país) e o mais engraçado é que as casas mais bonitas do Museu Nacional de Satului (http://www.muzeul-satului.ro/) eram precisamente as que tinham esta influência.


 

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Dia 7



Hoje estou finalmente a este de Bucareste.
Estou na comunidade de Făcăeni, mais para sul, mais para este, mais para próximo de alguma coisa, é certo. Coisas que já não contam hoje, coisas como ser delicado para quem não se conhece, coisas como saber quem são as pessoas que visitam este sítio perdido no tempo.

O Inverno já chegou aqui, adormeceu-se e acordou-se ao som do vento e da chuva. E de frio, mas é um frio genuíno, que sabe bem apanhar na cara. Faz de creme hidratante. Mesmo. Ou quase.

Tento meter conversa com as pessoas que encontro no caminho, mas só esta senhora me levou a sério.

Posso tirar-lhe uma fotografia, perguntei-lhe no meu romeno, porque é mesmo meu e só eu sei dele (I se poate fotografia?)
Ela foi sincera e disse-me, minha filha, queres tirar uma fotografia a quê? a esta bela figura (se não foi isso que disse, foi isso que eu percebi)
Mas mesmo assim chegámos a acordo, eu tirei a fotografia e ela perguntou-me quem eu era, o que fazia por ali. Respondi-lhe não sei ainda agora como que o meu marido trabalhava na Prio. E ainda estou para perceber como ela me compreendeu tão bem.

Enquanto falávamos descobri-lhe um dente de prata, o único, um incisivo central, na arcada de baixo. Queria muito ter-lhe tirado mais uma fotografia, agora só do seu rosto e do seu dente, mas achei que já não tinha mais explicações para lhe oferecer. E tudo tem um custo, até a delicadeza.
Uma fotografia de um rosto é uma coisa muito íntima de se pedir e eu nem o nome perguntei a esta senhora.
Mas hei-de perguntar e quando tiver e souber dizer-lhe mais coisas sobre mim talvez possamos chegar a um entendimento e se o meu próximo relato tiver já nome e rosto...então é porque o meu romeno autista conseguiu aldrabar qualquer coisita.


buna masa de prânz